quarta-feira, 23 de setembro de 2015

COLABORADORES - c i n e m a - "Meia Noite Em Paris" - por Ludwig Ravest

- Que é uma loja de nostalgias?


Essa é a pergunta chave que o ator que interpreta o eminente escritor Ernst Hemingway (Corel Stoll), seu olhar lúcido, sincero e arrebatador com o qual se dirige em direção ao protagonista GIL (Owen Wilson), é o leitmotiv do filme “Meia-noite em Paris” (Midnight in Paris, 2011).

Quem escreve essa “critica”, apesar dessa expressão ser ou ter sido muito mal interpretada, preferiria modificá-lo como “consideração”.

Tratando-se de Cinema há de escrever-se todo seu espectro sideral (siderare) que envolve a ambientação, isto é, desde as personagens até os elementos que justificam a sua hermenêutica.

Depreende-se, então, acerca da relação das duas personagens, aquele mítico e colossal balde cheio de ouro com o qual triunfante, Zaratustra volta das profundezas do conhecimento, balde este em onde estão contidos aspectos da existência humana universal como o são a vida do “ser” dentro de seu “tempo” e a ambígua relação que tem aquele com seu passado em relação ao seu presente e vice-versa.

Como se sabe, os gregos postulavam, assim como tantos outros povos da Antiguidade Clássica, o mito basilar de que em tempos remotos houve uma perfeita sintonia entre os Homens e a Natureza em relevo e que em sua inocência, comparável apenas aos deuses com todas as ambrosias dispostas sobre os banquetes cuja envergadura era inominável, viviam em paz e bonança, alegria e temperança: pacto visceral entre o apolíneo e o dionisíaco.

Eis que surge, então, a famigerada Idade de Ouro.

Outrora, os homens do campo do conhecimento perguntaram-se acerca dessa relação do homem e o tempo. Escritores, filósofos, historiadores, artistas se imiscuíram no escopo terrível e abissal para, a posteriori, interpelar o paradoxo do tempo sobre a vida dos homens.

No século XX, confirmou-se com o trabalho de antropólogos, etnógrafos e viajantes a descoberta de populações na África, na Oceania, na Ásia e na América que viviam como em uma existência etérea, diversa do que eles conheciam no hemisfério ocidental europeu e que em verdade correspondia ponto por ponto à descrição que tinham feito os gregos.

Apresentavam esses povos características puras, ou seja, sem nenhuma interferência de outras culturas e que, segundo consta nos escritos desses estudiosos, tinham um alto grau de civilização no que tange às relações humanas.

Agora já não havia nem tradição grega nem fantasias de poetas homéricos. Existiam, de fato, homens que viviam ainda em plena Idade de Ouro.

Se se tinha de passar da Idade de Ouro, aquele paraíso que para os estudiosos parecia um jardim edênico, em direção ao mundo de fora, alumiado pelas várias conquistas do homem em terrenos da ciência, das artes, da descobertas e do armamentismo, assim como o mercantilismo e o desenvolvimento tecnológico que demarcam esse hiato, ter-se-ia de fazer uma radical revolução, uma transformação da natureza, uma inclinação não-histórica, uma queda.

Como isto, o homem em sua busca eterna e inefável sonha em voltar a essa Idade de Ouro para afugentar as tristes consequências em que forjou essa dimensão quase apocalíptica em termos de sociabilidade ao estilo neoliberal burguês assim como em sua esfera psicológica.

O cineasta Woody Allen decifrou esse enigma à partir da dicotomia que existe entre o Homem e sua Temporalidade, tema dispendioso para a História da Filosofia que nasce precisamente com os gregos, passa pelo Ocidente com as grandes obras de arte da Renascença; açambarca a irresoluta teoria do cogito cartesiano e, com a “Fenomenologia do Espirito” em Hegel e a leitura classicista da tragédia em Nietzsche, reformulada por Freud, novamente, no início do século XX com Heidegger à cabeça e as incontáveis descrições na Literatura que vão desde Shakespeare até Cela ensamblam, então, a difícil tarefa de colocar em curso os pressupostos da temporalidade no homem dentro sua historicidade e dentro de sua cotidianidade como produtor de ferramentas que imprimem o afazer do pensamento e da cultura como finalidade.

Então, que acontece? Acontece, no filme, que a trama irrompe em sua Síndrome da Idade de Ouro no qual subjaz o mito exposto em linhas anteriores, debela o atual mal-estar da civilização e da cultura que já não é de hoje, nem foi de antes senão, e ademais, será algo que estará continuamente presente no âmago do homem: por que é que nos situamos em essa época e não em outra?

Por coincidência ou por causalidade, quem escreve essa “consideração” viveu o fato de ouvir uma pessoa dizer que aquele lugar em onde nos encontrávamos, naquele momento, naquele horário, numa rua de uma imensa Metrópole, foi muito melhor antes do que aquela experiência que nos motivava a estarmos situados “aí”.

Como esse pessoa vociferava sua reivindicação em alta voz, em alta voz eu expus para essa pessoa que isso era “um absurdo, porque então, nossa presença não tinha nenhum valor para ela”.

Houve um silêncio! Se até não muito tempo atrás se duvidava da existência dessa Idade de Ouro em onde as pessoas conviviam não de maneira racional ou irracional e sim, baseado nos intuitos subliminais da boa sociabilidade, os antropólogos descobriram que havia realmente seres humanos que viviam em completo quietismo diante da Natureza que se lhes apresentava como matéria e espirito, quietismo divinizado através do espelho do homem indomável, ejetado durante os rituais de passagem de uma idade à outra, e o que era para esse homem uma coisa virginal, paradoxalmente hoje, trata-se de uma patologia.

Woody Allen quebra esse paradigma de uma forma surpreendente até porque sua “patologia” é o espelho encarnado no protagonista GIL como roteirista de Hollywood, como escritor medíocre situado na contemporaneidade tecnocrata e determinista no âmbito cientifico e comercial em onde tudo é regido pelo espirito do lucro e da fama no viés das novidades levando o mundo e o contexto a uma (ir) racionalidade injustificável.

De fato, o diretor tem um goze absoluto, à moda de Lacan, fazendo sua própria releitura do tempo. Nessa contratransferência psicológica, GIL, no papel de protagonista do filme também é um novelista medíocre e acompanhado de sua futura esposa Inez (Rachel McAdams), histérica e consumista, sempre reclamando dos passeios noturnos de GIL, passeios esses que faz descobrir a magia de transportar-se através do túnel do tempo até Paris nos anos 1920.

Seu desejo de caminhar pelas ruas de Paris sob a chuva e a procura de alguém que compreenda esses dois mundos no qual ele transita até a excisão no lume de sua ingenuidade todas as respostas lhe pareçam claras como no caso de Man Ray (Tom Cordier) em que “nada parece estranho” e, igualmente, no desenlace com Gabrielle (Léa Seydoux) quando aceita a companhia de GIL para caminhar sob a chuva. “Meia-noite Em Paris” é contemporâneo de Luís Buñuel com “L’âge d’or” (1930) porque também quis mostrar esse sentimento, paradoxalmente, em uma outra época que lhe tocou viver e desde uma ótica diferenciada, isto é, os dogmas da sociedade da época ou, para melhor ilustrar essa diferença, a outra cara da Belle Époque com suas misérias, orgias e intrigas de palácio.

Cabe assinalar, que à partir dessa ambiguidade surge uma outra: a de como restaurar os idos tempos, em este caso, La Belle Époque, e transferi-la no tempo presente em que o protagonista GIL se situa, isto é, no Terceiro Milênio. Motivado pela discussão, Paul (Michael Sheen) é a primeira pessoa que irá criticar essa disposição fugidia do protagonista em que a Síndrome da Idade de Ouro “é um estado de perfeita negação, uma negação do doloroso presente”.

GIL, escreveu uma novela onde jaz impressa a memória-souvenirs que, segundo o filósofo francês Henri Bérgson, é aquela memoria lembrança de algo que passou há muito tempo, reencontrando-se na rota de colisão entre o ser e o tempo, como imagem cognoscitiva para uma redenção diante do mal-estar do presente.

Surgem, a partir desse embate, os nostálgicos de todas as épocas que se lamentam dos “bons tempos” que se foram e que nunca mais voltaram.

Sem dúvidas, todos nos sentimos em um dado momento de nossa existência identificados nessa rota de colisão. Mas, essa tendência, torna-se fútil e perigosa.

O desencadeamento do filme evidencia que qualquer tentativa de reter o inevitável curso do tempo está fadado ao fracasso; perigosa travessia porque pode criar sérios distúrbios e conflitos neuropsíquicos. Inobstante, a arte sublima essa pugna porque o brincar daquele que transita pelos dois mundos não a faz ser nem mais significativa nem menos prosaica para uma geração que “há transmutado o passado com o simples passo dos anos a um status tanto mágico quanto vulgar”.

Contudo, a imaginação humana e as atuais tecnologias tendem a criar mundos paralelos, a aproximar o homem ao seu passado ou o que Platão instava a ser difuso, a recriar esse passado dando-lhe um matiz novo e onde cada ser humano possa modelar esse status difuso segundos os critérios com cada um encontre mais conveniente sem que, com isso, torne-se mais ou menos bizarro no presente.

O que foi feito, o que se faz hoje e o que se fará amanhã pode ser transmutável; o passado de uma técnica é como aquela música de The Beatles que se tocada hoje não haverá uma multidão de garotas cantando ié, ié, ié...

O contexto de hoje é outro e o de amanhã será diferente.

No entanto, não se pode cair na falácia de que tudo permanecerá imóvel como acontece no filme mexicano “O Vulto” (El Bulto, México, Gabriel Retes, 1991) em onde um jovem fotografo que cobria uma manifestação política, após ser brutalmente golpeado na cabeça fica em coma durante 20 anos e após acordar nota como tudo há cambiado, resultando, para o protagonista, inadmissível toda mudança social, política e familiar. Finalmente, GIL, o protagonista se vê forçado a confrontar a ilusão de que uma vida diferente é melhor do que a atualidade encontra sua rota de colisão com a mulher com a qual vai se casar, Inez, ela acaba descobrindo que gosta da língua francesa, o jeito francês de amar, o romantismo à francesa, a liberalidade que no universo americano ainda não é contemplado tal como o protagonista, em uma das cenas, sugere à guia do Museu Rodin (Carla Bruni).

De fato, detrás dos caprichos de Inez se oculta uma outra mulher, isto é, a mulher que deseja sua independência. Encontraria, essa inversão de valores, em sua máxima expressão, por exemplo, a mulher à época de Sófocles chamado de Século de Ouro de Péricles em onde Atenas expansionista gerou um mundo de (entre aspas?) paz e estabilidade o que propiciou o surgimento das artes, principalmente, o teatro.

No entanto, em essa época a mulher não partilhava os direitos constituídos na democracia ateniense, elas eram excluídas de qualquer intervenção na sociedade e eram tidas como seres inferiores e que deviam submissão aos homens e seu sistema. Adriana (Marion Cotillard) é o reverso da moeda: em todo hiato temporal ela pensa achar a sua Idade de Ouro.

No entanto, apesar de ser tão amada pelos ilustres artistas das épocas em curso, sente um vazio existencial haja carência de novidades, fato que evidencia a indústria da moda com Coco Chanel como justificativa para sua estadia em Paris.

Preconiza, de tal modo o carinho que sente por GIL que medo de viajar no futuro ela prefere a companhia de seus ídolos de “la Belle Époque”.

Não há nada mais frustrante para quem sofre de Síndrome de Idade Ouro do que descobrir que se estivesse vivendo na época ao qual deseja remontar-se, superar as ambiguidades da mesma,

Afinal de contas, em todo espectro de temporalidade se suscitam paradoxos e questões irrefreáveis no quetange a circunstâncias que não podemos dominar ou consertar porque muitas vezes não está ao alcance de nosso entendimento.

Para cada época seu próprio mal-estar!


Ludwig Ravest é chileno, escritor, estudou filosofia na Universidade de Santiago e atualmente vive e trabalha em São Paulo.

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