- Que é uma loja de nostalgias?
Essa é a pergunta chave que o ator que interpreta o eminente escritor Ernst Hemingway (Corel Stoll),
seu olhar lúcido, sincero e arrebatador com o qual se dirige em direção ao protagonista GIL (Owen
Wilson), é o leitmotiv do filme “Meia-noite em Paris” (Midnight in Paris, 2011).
Quem escreve essa “critica”, apesar dessa expressão ser ou ter sido muito mal interpretada, preferiria
modificá-lo como “consideração”.
Tratando-se de Cinema há de escrever-se todo seu espectro sideral
(siderare) que envolve a ambientação, isto é, desde as personagens até os elementos que justificam a
sua hermenêutica.
Depreende-se, então, acerca da relação das duas personagens, aquele mítico e
colossal balde cheio de ouro com o qual triunfante, Zaratustra volta das profundezas do
conhecimento, balde este em onde estão contidos aspectos da existência humana universal como o
são a vida do “ser” dentro de seu “tempo” e a ambígua relação que tem aquele com seu passado em
relação ao seu presente e vice-versa.
Como se sabe, os gregos postulavam, assim como tantos outros povos da Antiguidade Clássica, o mito
basilar de que em tempos remotos houve uma perfeita sintonia entre os Homens e a Natureza em
relevo e que em sua inocência, comparável apenas aos deuses com todas as ambrosias dispostas sobre
os banquetes cuja envergadura era inominável, viviam em paz e bonança, alegria e temperança: pacto
visceral entre o apolíneo e o dionisíaco.
Eis que surge, então, a famigerada Idade de Ouro.
Outrora, os homens do campo do conhecimento perguntaram-se acerca dessa relação do homem e o
tempo. Escritores, filósofos, historiadores, artistas se imiscuíram no escopo terrível e abissal para, a
posteriori, interpelar o paradoxo do tempo sobre a vida dos homens.
No século XX, confirmou-se com
o trabalho de antropólogos, etnógrafos e viajantes a descoberta de populações na África, na Oceania,
na Ásia e na América que viviam como em uma existência etérea, diversa do que eles conheciam no
hemisfério ocidental europeu e que em verdade correspondia ponto por ponto à descrição que tinham
feito os gregos.
Apresentavam esses povos características puras, ou seja, sem nenhuma interferência
de outras culturas e que, segundo consta nos escritos desses estudiosos, tinham um alto grau de
civilização no que tange às relações humanas.
Agora já não havia nem tradição grega nem fantasias de poetas homéricos. Existiam, de fato, homens
que viviam ainda em plena Idade de Ouro.
Se se tinha de passar da Idade de Ouro, aquele paraíso que
para os estudiosos parecia um jardim edênico, em direção ao mundo de fora, alumiado pelas várias
conquistas do homem em terrenos da ciência, das artes, da descobertas e do armamentismo, assim
como o mercantilismo e o desenvolvimento tecnológico que demarcam esse hiato, ter-se-ia de fazer
uma radical revolução, uma transformação da natureza, uma inclinação não-histórica, uma queda.
Como isto, o homem em sua busca eterna e inefável sonha em voltar a essa Idade de Ouro para
afugentar as tristes consequências em que forjou essa dimensão quase apocalíptica em termos de
sociabilidade ao estilo neoliberal burguês assim como em sua esfera psicológica.
O cineasta Woody Allen decifrou esse enigma à partir da dicotomia que existe entre o Homem e sua
Temporalidade, tema dispendioso para a História da Filosofia que nasce precisamente com os gregos,
passa pelo Ocidente com as grandes obras de arte da Renascença; açambarca a irresoluta teoria do
cogito cartesiano e, com a “Fenomenologia do Espirito” em Hegel e a leitura classicista da tragédia em
Nietzsche, reformulada por Freud, novamente, no início do século XX com Heidegger à cabeça e as
incontáveis descrições na Literatura que vão desde Shakespeare até Cela ensamblam, então, a difícil
tarefa de colocar em curso os pressupostos da temporalidade no homem dentro sua historicidade e
dentro de sua cotidianidade como produtor de ferramentas que imprimem o afazer do pensamento e
da cultura como finalidade.
Então, que acontece? Acontece, no filme, que a trama irrompe em sua Síndrome da Idade de Ouro no
qual subjaz o mito exposto em linhas anteriores, debela o atual mal-estar da civilização e da cultura
que já não é de hoje, nem foi de antes senão, e ademais, será algo que estará continuamente presente
no âmago do homem: por que é que nos situamos em essa época e não em outra?
Por coincidência ou por causalidade, quem escreve essa “consideração” viveu o fato de ouvir uma
pessoa dizer que aquele lugar em onde nos encontrávamos, naquele momento, naquele horário,
numa rua de uma imensa Metrópole, foi muito melhor antes do que aquela experiência que nos
motivava a estarmos situados “aí”.
Como esse pessoa vociferava sua reivindicação em alta voz, em alta
voz eu expus para essa pessoa que isso era “um absurdo, porque então, nossa presença não tinha
nenhum valor para ela”.
Houve um silêncio!
Se até não muito tempo atrás se duvidava da existência dessa Idade de Ouro em onde as pessoas
conviviam não de maneira racional ou irracional e sim, baseado nos intuitos subliminais da boa
sociabilidade, os antropólogos descobriram que havia realmente seres humanos que viviam em
completo quietismo diante da Natureza que se lhes apresentava como matéria e espirito, quietismo
divinizado através do espelho do homem indomável, ejetado durante os rituais de passagem de uma
idade à outra, e o que era para esse homem uma coisa virginal, paradoxalmente hoje, trata-se de uma
patologia.
Woody Allen quebra esse paradigma de uma forma surpreendente até porque sua “patologia” é o
espelho encarnado no protagonista GIL como roteirista de Hollywood, como escritor medíocre situado
na contemporaneidade tecnocrata e determinista no âmbito cientifico e comercial em onde tudo é
regido pelo espirito do lucro e da fama no viés das novidades levando o mundo e o contexto a uma (ir)
racionalidade injustificável.
De fato, o diretor tem um goze absoluto, à moda de Lacan, fazendo sua
própria releitura do tempo. Nessa contratransferência psicológica, GIL, no papel de protagonista do
filme também é um novelista medíocre e acompanhado de sua futura esposa Inez (Rachel McAdams),
histérica e consumista, sempre reclamando dos passeios noturnos de GIL, passeios esses que faz
descobrir a magia de transportar-se através do túnel do tempo até Paris nos anos 1920.
Seu desejo de
caminhar pelas ruas de Paris sob a chuva e a procura de alguém que compreenda esses dois mundos
no qual ele transita até a excisão no lume de sua ingenuidade todas as respostas lhe pareçam claras
como no caso de Man Ray (Tom Cordier) em que “nada parece estranho” e, igualmente, no desenlace
com Gabrielle (Léa Seydoux) quando aceita a companhia de GIL para caminhar sob a chuva.
“Meia-noite Em Paris” é contemporâneo de Luís Buñuel com “L’âge d’or” (1930) porque também quis
mostrar esse sentimento, paradoxalmente, em uma outra época que lhe tocou viver e desde uma
ótica diferenciada, isto é, os dogmas da sociedade da época ou, para melhor ilustrar essa diferença, a
outra cara da Belle Époque com suas misérias, orgias e intrigas de palácio.
Cabe assinalar, que à partir dessa ambiguidade surge uma outra: a de como restaurar os idos tempos,
em este caso, La Belle Époque, e transferi-la no tempo presente em que o protagonista GIL se situa,
isto é, no Terceiro Milênio. Motivado pela discussão, Paul (Michael Sheen) é a primeira pessoa que irá
criticar essa disposição fugidia do protagonista em que a Síndrome da Idade de Ouro “é um estado de
perfeita negação, uma negação do doloroso presente”.
GIL, escreveu uma novela onde jaz impressa a
memória-souvenirs que, segundo o filósofo francês Henri Bérgson, é aquela memoria lembrança de
algo que passou há muito tempo, reencontrando-se na rota de colisão entre o ser e o tempo, como
imagem cognoscitiva para uma redenção diante do mal-estar do presente.
Surgem, a partir desse
embate, os nostálgicos de todas as épocas que se lamentam dos “bons tempos” que se foram e que
nunca mais voltaram.
Sem dúvidas, todos nos sentimos em um dado momento de nossa existência
identificados nessa rota de colisão.
Mas, essa tendência, torna-se fútil e perigosa.
O desencadeamento do filme evidencia que qualquer
tentativa de reter o inevitável curso do tempo está fadado ao fracasso; perigosa travessia porque pode
criar sérios distúrbios e conflitos neuropsíquicos. Inobstante, a arte sublima essa pugna porque o
brincar daquele que transita pelos dois mundos não a faz ser nem mais significativa nem menos
prosaica para uma geração que “há transmutado o passado com o simples passo dos anos a um status
tanto mágico quanto vulgar”.
Contudo, a imaginação humana e as atuais tecnologias tendem a criar mundos paralelos, a aproximar
o homem ao seu passado ou o que Platão instava a ser difuso, a recriar esse passado dando-lhe um
matiz novo e onde cada ser humano possa modelar esse status difuso segundos os critérios com cada
um encontre mais conveniente sem que, com isso, torne-se mais ou menos bizarro no presente.
O que foi feito, o que se faz hoje e o que se fará amanhã pode ser transmutável; o passado de uma
técnica é como aquela música de The Beatles que se tocada hoje não haverá uma multidão de garotas
cantando ié, ié, ié...
O contexto de hoje é outro e o de amanhã será diferente.
No entanto, não se
pode cair na falácia de que tudo permanecerá imóvel como acontece no filme mexicano “O Vulto” (El
Bulto, México, Gabriel Retes, 1991) em onde um jovem fotografo que cobria uma manifestação
política, após ser brutalmente golpeado na cabeça fica em coma durante 20 anos e após acordar nota
como tudo há cambiado, resultando, para o protagonista, inadmissível toda mudança social, política e
familiar.
Finalmente, GIL, o protagonista se vê forçado a confrontar a ilusão de que uma vida diferente é
melhor do que a atualidade encontra sua rota de colisão com a mulher com a qual vai se casar, Inez,
ela acaba descobrindo que gosta da língua francesa, o jeito francês de amar, o romantismo à francesa,
a liberalidade que no universo americano ainda não é contemplado tal como o protagonista, em uma
das cenas, sugere à guia do Museu Rodin (Carla Bruni).
De fato, detrás dos caprichos de Inez se oculta
uma outra mulher, isto é, a mulher que deseja sua independência.
Encontraria, essa inversão de valores, em sua máxima expressão, por exemplo, a mulher à época de
Sófocles chamado de Século de Ouro de Péricles em onde Atenas expansionista gerou um mundo de
(entre aspas?) paz e estabilidade o que propiciou o surgimento das artes, principalmente, o teatro.
No
entanto, em essa época a mulher não partilhava os direitos constituídos na democracia ateniense, elas
eram excluídas de qualquer intervenção na sociedade e eram tidas como seres inferiores e que deviam
submissão aos homens e seu sistema.
Adriana (Marion Cotillard) é o reverso da moeda: em todo hiato temporal ela pensa achar a sua Idade
de Ouro.
No entanto, apesar de ser tão amada pelos ilustres artistas das épocas em curso, sente um
vazio existencial haja carência de novidades, fato que evidencia a indústria da moda com Coco Chanel
como justificativa para sua estadia em Paris.
Preconiza, de tal modo o carinho que sente por GIL que
medo de viajar no futuro ela prefere a companhia de seus ídolos de “la Belle Époque”.
Não há nada mais frustrante para quem sofre de Síndrome de Idade Ouro do que descobrir que se
estivesse vivendo na época ao qual deseja remontar-se, superar as ambiguidades da mesma,
Afinal de
contas, em todo espectro de temporalidade se suscitam paradoxos e questões irrefreáveis no quetange a circunstâncias que não podemos dominar ou consertar porque muitas vezes não está ao
alcance de nosso entendimento.
Para cada época seu próprio mal-estar!
Ludwig Ravest é chileno, escritor, estudou filosofia na Universidade de Santiago e atualmente vive e trabalha em São Paulo.
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