domingo, 13 de setembro de 2015

COLABORADORES - c i n e m a - "Relatos Selvagens"- por Ludwig Ravest

A imprevisibilidade é a pedra angular do filme “Relatos Selvagens” (Relatos Salvajes, Argentina 2014) escrito e dirigido por um dos mais prestigiosos diretores argentinos, Damián Szifron.

Essa coprodução com a Kramer & Sigman Films e Telefe, Argentina demonstrou que pode-se trazer de forma criativa o que há de mais universal nos seres humanos, a sua agressividade.

Nesse intuito, conceitos tidos aparentemente como escopo da ética, da moral e da filosofia em que o homem ao transluz dessas ciências vê-se no espelho tanto como indivíduo como de sociedade, ou pertencente a um grupo social, surpreende pelo modo com que o filme enfoca a problemática, emergindo desta urge, uma ambiguidade, um paradigma: quando a ordem é o caos. Suas personagens oscilam entre a lucidez e a loucura a uma velocidade vertiginosa.

O alvo do diretor de trazer à tona os acontecimentos da vida real, aquilo que se poderia denominar o escandalosamente indefensável, é a resposta do porquê de seu sucesso em bilheterias.

Durante os seis set de imagens sem impetrações nem adjudicações metafísicas, o que o homem em ação leva a conceber é a finalidade como “ser no mundo”.

Em um ambiente psicológico onde acirradamente reinam os pecados capitais, a força do superhomem, a fala maldita, a cisma das fúrias, a vingança, a apostasia social, a infidelidade e a luta pela vida quando entre a morte e esta, se disgrega sua linha tênue, é onde se mostra a verossimilhança do homem a ação.

A vida trabalhando diariamente. Na sua dinâmica rasga o córtice que oculta todo o seu dramatismo e inconveniência.

A ação predestina seus feitos.

A ubiquidade espacial é diferençável embora dissimile são os espaços em onde a vida vai circulando, demonstra seu espelho em onde ninguém é capaz de retratar-se com temor de dissipar a sua apoteose.

Os elementos circulam, atravessam, se movem e se locomovem como em um avião, como em um automóvel, como as pessoas ao dançarem, como a rodagem do próprio filme.

O arrombo é o único fator que leva essa mobilidade a corromper-se, todavia, em movimento flutuante.

Pateticamente as personagens reclamam, no lupanar dos instintos, o arroubo de serem vítimas como no caso do primeiro quadro “Pasternak”, nome do comissário de bordo do avião em onde conseguiu juntar todas as peças vivas em um único ambiente até a aterrisagem em casa dos pais deste, episódio que tornou-se real com o desastre aéreo do Airbus A 320 nos Alpes Franceses, trouxe à baila o velho tema do suicídio como uma problemática social já que o piloto Andreas Lubitz, no caso do acidente na vida real, sofria de graves tormentos psicológicos produto de uma abrupta separação conjugal o que o levou a estatelar o avião nas montanhas junto com dezenas de passageiros.

Sobre a psicopatologia da vida cotidiana nem tudo foi dito.

Todo e qualquer acidente é constitutivo à substância, ou seja, está à altura da causalidade e de sua consequência.

Mas não é apenas isso que o filme deixa transparecer em torno a um tema tão delicado e tão caro para pesquisadores, psicólogos, pedagogos, políticos e filósofos como o é o cotidiano do ser humano.

No segundo set do mesmo, “As Ratazanas”, a garçonete que reconhece no cliente seu algoz de outrora e que, sem medir consequências, transfere seu desejo de assassinato à cozinheira que a acompanha no restaurante de um posto de gasolina no interior da Argentina.

O crime, neste caso, compensou pela vingança do suicídio do pai da garçonete impresso no vômito do filho do algoz. No entanto, a dúvida paira em torno de se era a o verdadeiro mentor da decadência da família da garçonete ou se se trata de uma versão contemporânea do “Homem dos Ratos” de Sigmund Freud, acha-se visto que o quadro não faz nenhum “feedback” sobre a vítima.

No terceiro set de imagens dois homens que simbolizam o cruel retrato do trânsito automobilístico em fase do avanço econômico em ruas e estradas: “O Mais Forte”.

Um rico empresário em sua altanaria, conduzindo seu blindado Audi conversível em uma estrada que lembra velhos filmes do faroeste clássico, e um pedreiro mal humorado em seu desgastado e velho Peugeot, cujo semblante de homem rude, despojado de honra, nada a perder, como nas típicas personagens dos filmes de Clint Eastwood.

A luta corpo a elemento e elemento a corpo debela-se quando a morte os chama a conceber o erro de conversão à loucura do inadmissível atrás de uma violenta explosão que destruiu ambos deixando um sombrio e cabal rastro de maledicência que se imprime no hilário comentário do médico legista ao delegado quando diz, ironicamente, que o infortúnio que acometeu aos dois tratava-se de uma “disputa passional”. No quarto quadro, “Bombita”, o engenheiro Simon, interpretado por Ricardo Darín, sentindo-se usurpado pelas leis regulamentárias do trânsito (novamente o fator automóvel), a ineficiência do sistema, a ambígua irregularidade da sociedade das convenções que transmite a sensação de impotência, desprezo e insegurança faz com que ele se insurreccione contra essa transferência colocando em risco não apenas sua própria integridade psicofísica, senão e ademais colocando no banco dos réus o próprio julgamento da sociedade de convenções diante de sua ineficácia como promotor de satisfações pulsionais do cidadão.

No fim, ele é reconhecido pela imprensa e pelas redes sociais como o herói que soube colocar em questionamento o sistema através da atitude de explodir seu carro guinchado: um movimento em falso fez sucumbir pelos ares o estacionamento de retenção pertencente ao órgão que fiscaliza o trânsito na cidade de Buenos Aires.

No preciso instante da explosão, uma mulher discutia com um funcionário público.

Quem não viveu uma situação-limite tendo o automóvel como elemento causal? Se no quadro Nº 3 o automóvel aparece como elemento algoz que motiva o instinto humano a convocar a força dos sentimentos mais abruptos, ao absoluto extremo em que ambos se situam em um transe passional (dir-se-ia um sentimento orgástico em quatro rodas), já no quadro Nº 4, o automóvel transcende sua função de incorporação imediata ao cotidiano pondo em risco a sociedade e o indivíduo como tal, um inexorável divórcio.

No quinto quadro, “A Proposta”, o automóvel não é algoz do feito, nem é divorciável, mas sim, quem o conduz e a violência cujas proporções adjudicatórias na medida em que os homens querem levar vantagem dessa situação, já não é somente do condutor, senão e ademais de um aparato ligado ao sistema judicial.

Neste caso, um filho de um bilionário atropela e mata uma mulher e seu filho, ainda no ventre, foge às circunstâncias e seu pai tenta negociações fraudulentas na figura do advogado defensor dos interesses da família e a justiça, colocando o jardineiro no centro das atenções como culpável de semelhante horror a um preço que ele jamais em sua humilde condição poderia alcançar.

Nesta trama, muito corriqueira em nossos países sul-americanos em onde quem tem se salvaguarda da sentença condenatória põe em xeque ao humilde homem quando o pai da criança morta, o marido da mulher atropelada, aparece na TV jurando vingança.

À frente do aparelho de TV: o bilionário, o advogado, a justiça institucional, o vingador ri de todo mundo, da própria polícia e de todos os médios jornalísticos e de pessoas que exigiam justiça, ceifando a vida de quem jamais seria capaz de cometer tal atrocidade, ou seja, do jardineiro.

Finalmente, no sexto quadro, “Até que a Morte os Separe”, a mulher ferida no seu orgulho disputa a supremacia com o homem que acredita ser o único príncipe encantado em toda sua vida. As cenas, que lembram o filme “O Anjo Exterminador” de  Luís Buñuel, se passa dentro de uma mega-festa de casamento, a civilização e a barbárie disputam espaço ao balanço de danças judaicas.

A decoração é suntuosa, luxuosa, a majestosidade da riqueza se misturam com o indecoro patético dos nubentes e o desvanecimento de todos os rijos processos da moral judaica e do conservadorismo aristocrático.

Seu extremo, é o absurdo, o ridículo. Se no quadro Nº 1 cita-se o quinto círculo infernal de Dante, no quadro Nº 6, o nono círculo insta a seu desfecho final. “Relatos Selvagens” não tem nada de naturalismo.

Rousseau e Hobbes caminham de mãos dadas, figurantes e figurinos da mesma moeda. Se a violência humana é tudo aquilo que nos rodeia a paz não seria nada mais do que uma justificativa para ampliá-la.

O “Homines Lúpus” e o “Bom Selvagem” são os protagonistas dessa interessante saga que chama o homem à sua reflexão filosófica sobe o significado de sua postura suprema de senhor de todas as coisas além do tempo e do espaço e essa eterna procura de ressignificação de seu papel como indivíduo e sociedade.



Ludwig Ravest é chileno, escritor, estudou filosofia na Universidade de Santiago e atualmente vive e trabalha em São Paulo.

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