terça-feira, 12 de maio de 2015

COLABORADORES - "Detalhes, Santiago do Chile" - por Ludwig Ravest

Foto divulgação
Uma cidade que já foi denominada Alfa de Sudamérica; contemplada como distinta de seus pares: toda comparatividade é a negação do outro e é por isso que ela é incomparável.

Mas ela está aí entre a Cordilheira dos Andes e a Serra do Mar denominada Cordilheira do Litoral com seus menos altivos picos, porém tão divisória sua máscara que engaveta duas cidades de um mesmo contorno: Santiago e Valparaíso, esta última a mais poeta de todas as cidades chilenas.

Santiago, uma cidade discreta demais; entre os abismos e as alturas, duas caras de uma mesma vertigem que colidem entre si demonstrando sua formosura e densidade. 

Âmbar e opacidade confluem: é o olhar que espreita sua “panoramicidade” e a fusão dos contrários entre os murmúrios de sua população ávida de palavras e ensejos. 

Metrópole que carrega a ferida ainda aberta de um fechado passado de aço e indulgência: os aborígenes a incendiaram sete vezes; os de casaco gris a mantiveram em cativeiro por dezenove anos; um labirinto de um fauno hostil, cabelos desgrenhados, Vênus recíproca às inúmeras fontes de água que submergem em parques e praças de solitários; inibida pela escuridão remanescente de seu próprio passado que ainda cheira a presente sobejando latidos em antigos muros roídos pelo frio e pelas chuvas outonais.

Santiago de Chile, uma cidade que se debate entre o que foi ontem e o ontem que desmarca o amanhã que parece nunca chegar e nem sequer aparecer na aurora furtiva aos pés do Cerro Santa Lúcia. 

A cidade apresenta-se imune à contemporaneidade embora sustente os firmes laços com parentes longínquos do Ocidente cujas margens foram repentinamente borradas pela própria geografia engavetada. 

Sim! 


É uma cidade engavetada ainda que aberta aos olhares de turistas e curiosos. 


Mas, atenção: nada que um bom vinho não supere-a com suas controvérsias.

Eis que se ergue um Santiago filosófico com seus excessos de informação, de suas ruas exacerbadamente limpas em alguns acessos, descabeladamente desleixadas em seus rincões ocultos e perigosos: nada que um bom “pebre cuchareado” (coentro, cebola, alho e pimenta) não possa acompanhar o mesmo vinho e um prato de “porotos graneados”.

Uma empanada? 

Porquê não? 

Se até Rodin que se ergue majestoso no Museu de Belas Artes cheira a triunfo por sobre o “smog” citadino e a melancolia sobre o gorjeias dos pássaros que não se inibem em cantar entre álamos e acácios amarelados. 

Gabriela Mistral ainda fala sobre seu centro distante da periferia e perto das lentes dos turistas: nada que o abraço eficaz do Cristo no Cerro San Cristóbal impregne de sonhos e alavanque os poetas a cantar a frieza de seus habitantes soturnos e discretos. 

E no abixar do sol, as ninharias de das crianças em um quase ensolarado dia de domingo de abril, aquele mesmo abril que fede a solenidade e nostalgias.

Santiago artístico que, como diria Baudrillard, a produção de bens e o fantasma do consumo fornece a ostentação dos que montaram a cilada dos ferrenhos conquistadores e submeteram de intrigas a seus súditos de roupas mínimas e linguajar tóxico por sobre murais de uma antiga capitania: nada que os quatro notáveis não tenham dito antes sobre as sombras, as cúspides, os fantasmas e as belezas naturais: Neruda, Huidobro, Pablo de Rokha e Gabriela Mistral.

Santiago uma prosa de aventureiros, um devaneio para os suados ociosos, uma procura para os fugitivos, um encono para os desvalidos, uma sutura para os feridos, um encalço para os orgulhosos, uma admiração para os estrangeiros, uma desproteção para os holocaustos da natureza. 

Uma cidade que floresce diante da estranha sensação de entranhamento compulsório, mas que vale assisti-la junto às suas solidões: uma Troia sul-americana.

Diante do exposto vale a pena indagar: o que é isso? 

Como é isso? 

Por quê? 

O que de fato nos deveríamos conhecer? 

Mas isso aqui não é informação. É um texto de quem um dia viu a cidade entre chamas e balas. 

Hoje, após 30 anos sem ter sido contemplada por esse famigerado aventureiro viu a cidade como quem vê aquela incorporação do espírito sobre a matéria pulsando na artéria as veias de um tempo que foi o tempo de noites sem lua e desejos de liberdade.

Santiago se situa e não mudou: a Troia sul-americana, a Mediterrânea a 33° 26' S, 70° 39' O; a 567 metros sobre o nível do mar; a 7a.  mais habitada da América Latina e a 5a. mais metropolitana de toda América Hispânica, Santiago de Chile, detalhes que prevalecem na memória por perguntar-se a si mesma: Eu sou daqui?


Ludwig Ravest é chileno, escritor, estudou filosofia na Universidade de Santiago e atualmente vive e trabalha em São Paulo.

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