sábado, 7 de fevereiro de 2015

COLABORADORES - Considerações Sobre Obra Imagética “Dês-Pedaços”, da artista Fernanda Sánchez Valdivieso - por Ludwig Henriquez Raves


Foto da obra-pesquisa de Fernanda Valdivieso
Que diabo! Claro que mãos e pés
cabeça e traseiro são teus!
Mas tudo isto que eu tranquilamente gozo
é por isso menos meu?
Se posso pagar seis cavalos
não são minhas tuas forças?
Ponho-me a correr e sou um verdadeiro senhor,
como se tivesse vinte e quatro pernas.”
((Goethe, Fausto, Mefistófeles, I, cena 4))

“Onde há olvido, existe memória; onde existe memória há um quê de olvido”


                                                         ((Luciano de Samosata, Poesia Latina, Séc. XII))


“Fugir não é exatamente {fugir} viajar, tampouco se mover {…} as fugas podem acontecer no mesmo lugar, em viagem imóvel {inércia rotacional} ...o imperceptível é o caráter comum de toda velocidade e da maior lentidão”


                                                             ((Gilles Deleuze-Claire Pernet in. O Último Copo de Daniel Lins))

Um dos temas monumentais que preenchem as milhares de folhas de papel impressas no mundo inteiro; que persegue à raça humana desde as suas origens é a questão do esquecimento. 

Proficiente seria declarar a questão do olvido, do esquecimento, da memória e da perda como questões ambivalentes dentro de seu próprio escopo. Supondo que esquecimento e olvido sejam semelhantes embora dissímeis em sua ontologia linguística; assim sucede, noutro âmbito, com acepções como memória e perda, objetos de disputas científico-investigativas e literárias que relevaram o assunto até a exaustão sem muitos avanços. Nesta consideração sobre a autora da obra imagética “Dês-pedaços”, fotografias de objetos “esquecidos” tiradas entre Berlim e Londres, a artista e educadora paulista Fernanda Sánchez Valdivieso possui como leitmotiv de sua obra não apenas o objeto-surpresa dentro de um espaço qualquer entre as duas cidades mencionadas, ora como alusão a um erro humano, ora um acidente da natureza infinita que esconde com raras mirabolâncias o devir humano. 

A autora coloca a disposição dos centros ópticos de cada ponto de vista humano uma ideia absorta em sua própria veia artística: um objeto e um espaço qualquer, todavia, uma antiarte.

         O objeto aí {largado aí}, destacado em meio a uma infinidade de elementos que dão origem a outros objetos que rodeiam à Humanidade como mantenimentos simbólicos de uma existência dada. Isso que está aí, naquele momento, naquele lugar, naquela hora que se atravessa e se deixa observar como quem atravessa um lago ataviando suas beiradas e seus guardiães que dão vida àquilo que se vê como um lago dando-lhe vida ao mesmo.

         O olvido daquele objeto como substantivo representativo em um dado momento, exerce seu poder de coisa àquilo que lhe foi destinado a ser {essa coisa }como tal foi engendrada e, de fato, uma função a cumprir, um pertencimento; um microespaço de tempo e diante da adversidade do real, a coisa, já não subjaz ao circunscrito que lhe foi dado a ser e servir enquanto espécie viva {coisa viva} e em constante movimento. 

O acontecimento passa a ser não mais um acidente da natureza, um simples acidente da natureza. 

Não. 

Ele passar a ser um erro com suas causas. 

Mas o acidente também possui suas causas, metafísicas ou não, se reproduz como extensão da fala humana em onde as palavras parecem esvair-se junto ao vento sem saber que nalgum lugar do consciente estão armazenadas.


         Que nos faz pensar ao avistarmos um gorrinho de lã sob um cruzamento de asfalto?
         Prontamente será que alguém deixou cair o gorrinho por uma desatenção. 

Assim, objetos que nos trazem a garantia de um prazer bem-sucedido desde o momento de parir tal objeto até seu uso como finalidade, isto é, o meio como fim, logo que perdido, extraviado, não mais um objeto de admirável relevância pelo seu serviço e sim, uma lamentação por não haver reproduzido o gozo mais vezes para evitar, desta maneira, a dor de perda. 

Porém, se o objeto abandonado, em desleixo, despreocupado, esvaído no bel-prazer do escarcéu e seus acidentes da natureza, antes, um elemento constitutivo ao interior de uma caminhada humana e cotidiana, logo mais, apresenta-se na lateral de uma poltrona de um trem em um dia frio e chuvoso de um outono. 

Apresenta-se fria e desimportante, como as folhas esmaecidas ao rés do chão produto da estação; será que nos remete inequivocamente à desimportância do objeto {neste caso, um guarda-chuvas} ou à interface de um desejo oculto daquele que abandonou certo objeto e que foi, durante um tempo até sua desaparição, um objeto de refúgio  do ter e hoje, um perdido dentro de um vagão de passageiros?

         Os objetos falam; silenciosamente barulhentos eles são.

          Esses objetos que se encontram dentro de uma ordem: o seu estar aí causa uma impressão forte de desordenamento das circunstâncias. Porque, qual seria o sentido de uma colher em meio a um ambiente, um rincão selvagem e inóspito de qualquer cidade?

          Acaso enxergar naquele lugar um olhar perverso e original que a arte oculta, trás o véu da sublimação social?

          A ninguém lhe pode importar sua existência, notadamente exista na antessala um olhar dentre tantos e tantos olhares. Um objeto que não é recíproco com aquilo que lhe rodeia causa na maioria dos olhares um quê de nojo e desrespeito com o fato que aquele objeto projeta, ali, ao rés do chão, convivendo com aqueles microrganismos que nascem à beira das calçadas, timidamente expõem-se para exigir dos olhares da cidade, uma maior atenção a cada passo que se dá…

          Porque uma lixeira é exatamente o meio para um fim: jogar lixo. Ora, um sapatinho cujas cores relembram uma criança, quiçá, uma criança feminina que achincalhada nos braços de sua mãe, um descuido programa um acidente cujas causas atendem a uma inumerável especulação de toda ordem, possa significar ainda muito mais que o próprio fato do objeto largado aí não correspondido e, tampouco, não reclamado.

         De fato, nós não somos controladores de todos os elementos que a existência nos impõe.          
         Mesmo à guisa de todas as informações disponíveis que hajam para conhecimento de seus portadores, a perda de um objeto será sempre o maior medo de todos os homens e mulheres desde o momento que as pessoas saem de seus lares.

         Mas a força gravitacional do pensamento humano não apenas julga ou critica um fato em onde torna-se possível ditaminar o demonstrável e insubstituível. Essa força pode transformar o erro
de alguns em uma edificante ideia para outros, cujo contraponto, por fim, afirma a finalidade existencial da arte cujo procedimento de interposição, pela sua própria natureza e adversidades, corrobora de forma gritante: a antiarte.

         A artista paulista radicada no exterior e quem escreve esse pequeno tratado, transformado em considerações, acepção esta que, universalmente, ressignifica o ser humano em todas suas intermitências e deslocamentos leva como tema principal a antiarte do encontro. Essa antiarte do encontro significa: o encontro do objeto da arte à dimensão psicológica e existencial humanas espelhando sua natureza crua, porém com um leve toque de perfume de rosas sem espinhos.


A imagese dialógica encontra o perdido e, tal vez, reincorporado-o ao seu destinatário. Aquele que perdeu dentro de si a maior margem possível de prazeres próximos às demandas do cotidiano acaba encontrando-se ao seu objeto, força inexorável de identificação.
         
No entanto, os opostos também se reúnem para notar sua ambivalência, neste caso, o objeto perdido e quem o perdeu, quem deu-lhe vida e com vida devolveram à lente, a maestria dos objetos em curso.
         
Desde um guarda-chuvas até um par de sandálias, passando pelos tradicionais óculos e prendas de crianças de colo. O universal sempre é a coisa, bem dizia Aristóteles. No entanto, contestado pelos argumentos sobre o insubstancial que a substância persiste e não meda em mostrar-se de uma forma gritante, a coisa já não é mais a coisa em si dos antigos, mas sim, o fim da arte contemporânea dando início a antiarte sem propósitos exclusivamente temporais em se tratando de objetos quase desimportantes, todavia, importantes como ferramentas que acompanham o devir humano.
         
A antiarte não é um estado de oposição à arte tidamente conhecida por todos como o espelho da alma humana, com os seus assombros e suas calúnias, separatismos sociais e religações. A antiarte são os dês-pedaços da alma humana do que restou dos nossos ciclos históricos anteriores.
         
Anteriores pode significar também o anterior àquele momento: a memória. Por mais que esta seja um elemento que constitui a maior parte do conhecimento ontológico, sempre ela estará à deriva dos acontecimentos tidos por acidente. Eis onde jaz o cotidiano, os detalhes…
         
Assim, a lente fantástica da autora, sem os prenomes tecnológicos ao qual as fotografias são contempladas como certeiras dentro de mesmo modo processual do nosso tempo, capta a sensação do eterno, daquilo que sempre será intimamente conjugue de nossa existência. As fotografias não possuem nenhum tipo de formalidade a não ser a própria lente de quem está à captura como o caçador com sua escopeta, trás sua caça.
         
Aqui a autora procura fotografar a memoria-souvenirs, acepção esta tirada das obras do filósofo francês Henry Bergson, na qual sustenta valores profundos no dia a dia das pessoas. Aquela memória não mais intrinsecamente ligada a um passado histórico olímpico ao qual nos acostumamos, de maneira errada, a percebê-la.
         
Apresentam-se apenas como meras quimeras diante de todas teses que deram por acabada a questão da memória e do esquecimento sem que a própria pretensão de arquivar o nome de alguém diante de uma suposta descoberta, não seja mais do que continuar a acobertar a verdadeira forma de ver o fato do real e levá-las sem prerrogativas a uma estimativa numérica de pessoas cada vez mais proporcional, àquelas pessoas que jamais pensaram que poderiam se refletir no espelho sem que o erro seja o objetivo último dessa busca.
         
Mas sim um erro que pode significar a percepção de que o caos também, (sim!) pode fazer parte dos nossos sentidos.

         Ou, no melhor dos casos, o caos sempre fará parte dos nossos sentidos.


Ludwig Ravest é chileno, escritor, estudou filosofia na Universidade de Santiago e atualmente vive e trabalha em São Paulo.

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