terça-feira, 29 de julho de 2014

CINEMA - "Feliz Natal" - por Tito Oliveira

Estreias sempre suscitarão maiores expectativas na crítica e no público, em especial quando se trata da transição de ator para diretor de cinema. 

Isso não significa que a partir do momento que passa a ser diretor é preciso dispersar-se da continuidade numa carreira de ator. Não querendo insinuar que esta seria a ideia do então ator Selton Mello ao apresentar sua primeira direção no cinema. 

Envolvido em projetos simultâneos Selton é provido de uma carreira com histórico de atuações primorosas, a exemplo de "Lavoura Arcaica", 2001, de Luis Fernando Carvalho, e "O Cheiro do Ralo", 2007, de Heitor Dhalia. Nos apresentando expressivos traços de suas vivências na direção de Feliz Natal, além de equacioná-las, em principio, à nuanças que referenciam o conceitado Andrei Tarkovski. 

Feliz Natal, 2005, surgiu ironicamente em um período natalino e me fez apreendê–lo como uma justaposição do intuito do novo diretor a uma denominação especial que classificou as obras de Aristóteles, uma vez que como livros que tratam da filosofia primeira, o drama dialoga com o espectador através de uma metafísica. Isto é, percorrendo por uma investigação do ser enquanto aquilo que realmente é. 

O filme inicia com uma extensa ausência da fala, que por sua vez enaltece a boa captação de som na manipulação de objetos e nos movimentos dos atores. Essa passagem é regida por uma fotografia que me parece aludir a atmosfera concebida pela pintura surrealista do belga René Magritte, pois sugere a visualização de uma penumbra sobreposta a luz e constrói uma espécie de enigma na apresentação da face de um personagem que já se mostrara estigmatizado. 

Influências fazem-se ainda mais aparentes quando o drama começa a se desenvolver através da surpreendente aparição de Caio (Leonardo Medeiros) na festa de natal de sua família psicologicamente desestruturada. Tornando possível perceber a predominância dos planos fechados, muito explorados por diretores como Ingmar Bergman. 

Ao ver Feliz Natal o espectador tem a sensação de que paráfrases como "Feios, Sujos e Malvados ", 1976, de Ettore Scola, estão presentes em sua memória. Pois temos na direção de Selton Mello um exemplo também contundente de como vivemos em um sistema social que nos manipula com crenças ilusórias para disfarçarem a nebulosidade de nossa verdadeira essência. 

Assim fora constituída uma escrita que mescla significado e transcrição sobre a importância de celebrar o “nascimento de Cristo” não apenas como forma de reunir uma família e trocar gestos carinhosos através de pequenos presentes, mas, em suma, por aproveitar uma ocasião que mais evoca tudo que se encontra de mal resolvido entre os familiares e lavar a roupa suja. 

Embora o diretor não tenha se dado conta de um pequeno excesso em algumas cenas, os entrecortes na montagem e a fragmentação das situações evitaram, inteligentemente, qualquer proximidade a uma reverberação cinematográfica. 

Através da perspectiva que nos apresenta a consequência do rompimento numa união matrimonial fracassada, composta por uma mãe alcoólatra e um pai arrogante, é que começamos a entender a complexidade nos comportamentos infelizes dos herdeiros dessa má elaboração de vida, que exalam traumas, eufemismos, frustrações e muita culpa. 

Em meio ao plural de ingredientes, coesos a mais uma feliz seleção de elenco; resgatando esquecidos nomes como Paulo Guarnieri, somos contemplados com uma grande provocação cinematográfica. Emitido por um artista que sugere, caso assim prossiga, mais uma promissora carreira no cinema brasileiro. Este que se impôs em um novo posto como agente de densas reflexões e nos prova que, quando a arte analisa a condição humana, não devemos portar-nos indiferentes, mas, ao contrário, é preciso irmos de encontro a seu registro. 

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