quinta-feira, 31 de julho de 2014

COLABORADORES - Trecho do livro "A esquina do Mundo" - por Ludwig Ravest

Foto: Sergio Matta
Augustologia: ciência que estuda, sem contornar, movimentos, manifestações, expressões, dos “augustáveis”, humanos que trafegam vivos ou mortos-vivos do nosso século XXI pela Rua Augusta, esta que é uma artéria da grande cidade de São Paulo onde os notívagos mostram tanto a majestosidade de seus pensamentos assim como o obscurantismo das idéias e o desentendimento dos sentidos da realidade. Por outra parte, a espontaneidade, a clareza, a disposição orgânica, as emoções, o vácuo, a falta, a busca, a linguagem mais condescendente com nosso século são imagens profícuas, ou seja, a base do surrealismo que as abona.
   
Não por falar em surrealismo vamos repetir toda a transcendência de esta expressão, obrigando ao leitor ou à leitora a rememorar as antigas versões que a palavra surreal trouxe à tona incorporando os sentidos da existência e a realização dos pormenores que se embaraçam a medida do tempo e as circunstâncias.
   
O estudo meticuloso da Augustologia possui vias de acesso como o click da Cannon, ou o espiral caleidoscópico, ou craquete do Cinema, insinuando, destarte, a incorporação da palavra no instante em que os acontecimentos se sucedem. Não se trata, obviamente, de uma crônica, de um exame exaustivo das personalidades, de uma matéria jornalística, mas sim, é o símbolo do pragmatismo consentido naquelas inconciliáveis lutas entre as forças ativas e reativas e seus oponentes, a afirmação e a negação.
   
O estúdio visa à diversidade humana; cinge o aprofundamento das camadas da personalidade e a observância das superficialidades para, a partir de aí, relevar o cenário natural da rua onde alternam seqüencialmente os personagens nessa informalidade que abre as portas à espontaneidade. O que é diferente no retrato de uma cidade desejada e vilipendiada, ao mesmo tempo, a obcecação pelo prazer e a irreverência da madrugada são o baluarte da salvação.
   
O último escárnio de consciência adquirida vagando pelos meandros da loucura antes do pó, da ruína, do acaso, do amanhecer. Lá o esconderijo onde se afirma o lado ontológico da espécie humana. Viciosos dogmas dos elementos que corrompem, segundo os tradicionalistas, a alma, o corpo e o espírito, aqui conseguem manter um espaço original dentro dos textos “augustianos” sob a óptica do escritor que é seu personagem principal: a mesa 18 do BarH. Edênicos por natureza, os personagens, o escritor, a mesa 18, a Rua Augusta seguem o curso natural que um dia grandes observadores da ciência acabaram por mergulhar em seu transfundo seguindo a trilha das gônadas de enguia, os neurônios espinhais da lampreia e as fibras cerebrais, porém sem os dogmas entabulados em longos e fatigantes escritos.
   
Esclarecedor é avisar aos leitores que naquelas épocas, naquelas cidades do tempo não havia Rua Augusta ou algo similar onde a observação da espécie humana fosse tão evidente e solícita com as buscas formuladas pelos estudiosos. As cavernas, os paraísos particulares, os léus, os parnasos, as pandemias, núcleos de figurações de um presente onisciente refletido em um copo de cristal desde onde emanam os mais altos e baixos instintos. A sensação de desinibição aumenta.
   
Partindo do objetivo que é imergir no labirinto do pensamento e a ação no meio social, os arquétipos humanos, num frenesi devolvem toda a magia que se perdeu quando a “primeira mentira” se instalou nas cabeças e nas casas em nosso tempo atual. Descobre-se cadáveres, sangue, ossos, músculos em busca da saciedade que a panacéia do prazer insiste sempre em motivar as vicissitudes humanas quando o conhecimento da Historia do Homem se encontra desmotivada até a exaustão.

Transforma-se o monstro em espírito superior; relega-se aos últimos degraus conceitos de saúde e doença mental; achincalham-se medidas paliativas, slogans superficiais do mundo convencional, marcas registradas, poeira ideológica, tradicionalismos, etc. Em fim, tudo que é antigo ou arcaico, passa pelas mãos do lixeiro para ser incisado em algum buraco do mundo onde o lamaçal executa o trabalho de mascarar o podre da sua existência. Ninguém em busca de novidades, pois não há necessidade de novidades.

Os amores livres correspondem ao ensejo uniforme da massa que sofre com expectativas nunca projetadas em direção à satisfação de respirar, a alegria de estar vivo, a objetivar o olhar à beleza. Neste paralelo do hemisfério-inferno todos são aceitos, mesmo que a liberdade tão vangloriada seja apenas uma modesta senhora hipócrita que beija o bêbado, o viciado, o hedonista; beija os meninos de rua, os catadores de lixo e o traficante, aquele que não tem lei que o enquadre, pois perfaze a receita para a viagem edênica.

A Augustologia, modestamente, é o estudo de todos os estudos, a ciência de outras ciências, terreno para estagiários com ou sem diploma, a matemática do calculista. É a gesta épica das pessoas que foram até então indivisíveis pelos outros, pelas outras, pelas “nenhumas” das teses acadêmicas. São estas pessoas que dão vida à Rua Augusta e são elas que marcam o pêndulo e transformam-se sutilmente em balanço da situação presente: o mundo, o universo, o cosmos, a galáxia, todo complexo atômico e molecular de nossa dita civilização que atrai para si as cizânias e as elevações viram ensejo a partir da boca dos febris passantes que, como diz um amigo, conformam os coágulos dessa corrente sanguínea que jamais cisma em enlanguescer.

A rota fugaz que demarca o contorno da Rua Augusta, sucedaneamente uma visão paradisíaca em meio à pedra citadina, a perfeita simbiose epistemológica do áureo e do underground além da noite; no escuro o lirismo prevalece, a paisagens quixotescas, a manias garcilescas, as imagens gongorianas, as cavalgadas wagnerianas, belas alocuções que entre o éter e os agentes fumígenos tendem a perder-se, mas antes de esfumar-se pelos ares, a palavra recobra seu valor, pois antes que se dissipe no ar a pluma, o papel e o teclado do PC prontos para resgatar o alto valor da espontaneidade dos seres augustos.

Nessa escrita não vale a critica e nem supõe concorrência a círculos literários de grande porte e menos ainda a afamar-se com grandes condecorações ou louros já que a escrita em sua forma original e onipresente é dedicação ao tempo, a lavra da terra, a colheita das riquezas.
   
Nessa escrita pede-se apenas que somem forças os espíritos que outrora fizeram a labor detalhada de imprimir um tempo que lhes foi dado viver e conviver e que hoje, forjamos entre as pessoas que circundam nosso meio e que, além disso, tudo compenetram na existência de modo que o futuro tendo pertencido a essa gloria da escrita, permeia os rumos que os próximos tomarão depois da consciência adquirida e do valor que o pensamento e o corpo ainda não ganharam.

A Augustologia pede licença, pois nos referimos a homens e mulheres que fora todo artefato que lhe foi imposto para viver e interagir, apenas grandiosidades de outras pessoas que nunca imaginaram nosso mundo.

Por isso é que o aventureiro e o boêmio nunca a moda apagaram (nem apagarão), porque graças a eles muitos sabem (e saberão) que se pode pensar onde ainda não somos; que podemos ser onde ainda não pensamos.





Ludwig Ravest é chileno, escritor, estudou filosofia na Universidade de Santiago e atualmente vive e trabalha em São Paulo.

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