quarta-feira, 8 de outubro de 2014

COLABORADORES - "Diversidade e Território" - por Ludwig Ravest

Apresentação sobre exposição imagética da Agência Mabou35© e seus fundadores os fotógrafos Sergio Matta e Angela Pereira cuja busca permanente abre um leque de possibilidades de interatividade com a paisagem urbana e seus personagens visíveis-invisíveis com o objetivo de contar histórias que acontecem pelo mundo, interpretar essas mesmas pessoas, personagens e acontecimentos através de imagens com uma visão individual e artística de cada cenário e sua realidade publicando trabalhos autorais e oferecendo projetos artísticos a patrocinadores culturais.


“Ailson Teixeira da Silva, 18 anos, pelo menos é o que ele se lembra. A primeira vez que fotografei ele foi na copa do mundo na rua Xavier de Toledo, centro de SP. Tempos depois, encontrei com ele perambulando pelas ruas dela. Disse que lembrava de mim e foi com a minha cara, e, que se fosse outra pessoa, ele quebraria a câmera por estar tirando foto dele. Pediu pra publicar a foto na imprensa, que eu iria ganhar muito dinheiro com ela. Toda vez que o encontro, ele pergunta se já publiquei. Contou que enterrou os 4 avós. Um deles morreu de picadas de abelhas. Ganha uns trocados puxando a banca de uns camelôs até o estacionamento na rua Guaianazes onde eles costumam guardá-las. Reclamou que era super pesada. Ele fala com um pouco de dificuldade. Sofreu um acidente e por isso tem a língua presa e uma cicatriz na cabeça. O tio matou seu pai por causa de herança. "Dinheiro é amaldiçoado”


                     
Por Tito Oliveira - instalação da série Influência Indireta - "Irreconhecíveis"-
dimensões variáveis - pedras, tênis e calça jeans -
fotografia da exposição ENTORNO, na Casa-Museu Solar Santo Antônio -
Salvador- BA - 2010 
A mobilidade, a falta de “raízes”, a provisoriedade foram componentes primários para a expansão dos povos durante todo o desenvolvimento industrial e tecnológico da Humanidade.
                    O homem sempre tende a dirigir-se a um ponto firme quando se lhe indaga por seu lugar de procedência, a origem da qual partiu e o raciocínio sobre sua atual posição marcada de maneira ínsita pela ubiqüidade geográfica, topográfica e na qual, apesar de sua invisibilidade, inserido dentro de um contexto sócio-histórico, ele atua como ser humano que “está-aí” e que a sociedade o contempla, porém continua sendo aquele estranho ou aparentemente diferente de nós até nos acostumar com sua presença mediata e imediata. Depreende-se que nos deparamos com esse ser cuja pátria ele consentiu; cujo pedaço de terra ele abdicou; cuja casa ele denegou por variabilidades muitas.
                    A mobilidade humana desde tempos imemoriáveis sempre foi assunto muito estudado por diversos segmentos da sociedade. Na Literatura já é contemplada por Homero durante suas gestas e façanhas heróicas em tempos de Troia. O ser-mítico ampliado pelas crenças inefáveis aos sentimentos e emocionalidade humanas, bem dizia Joseph Campbell em “O Poder do Mito” age amplamente sobre o meio social em que o ser humano encontra-se inserido influenciando-o. É possível sustentar que essas viagens mitológicas efetivadas por viajantes e peregrinos assim como de migrantes e imigrantes, mendigos e andarilhos deu vida não somente à História da Humanidade senão que, e ademais, serviu de fluxo de inspiração para os mais variados estudiosos sobre o tema. Notamos isso nas confissões messiânicas acerca da Terra Prometida como no “Êxodo”, a busca da “Cidade dos Césares” ou Cidade Errante de Victor Fernandez Freixanes onde narra os pormenores de famílias que saíram de suas terras em busca de ouro, prata e prosperidade. Na Literatura o encontramos nas “Aventuras de Huckleberry Finn” de Mark Twain, no hobo em “Folhas de Relva” de Walt Withman, nos excluídos em “Retrato da Casa dos Mortos” de Dostoievsky em onde a narrativa sucinta ao tratamento que se lhe dava aos ditos aventureiros, viajantes, imigrantes, ex-presidiarios, mendigos e outros excluídos às margens das leis e dos governos. 
                    Na Literatura brasileira os aspectos de mobilidade social, diga-se de passagem, do ambiente rural à composição urbana foram contempladas em obras como “O Sertanejo” de José de Alencar em onde os retirantes nordestinos, diante da fragilidade de suas vidas e os conceitos de ideário romântico provocam um forte questionamento da legitimidade das oligarquias e as hierarquias de privilégios; a luta contra o poder baseado no personalismo e no paternalismo ganha força com instrumentos novos de argumentação em épocas onde o Positivismo estava em pleno auge. Encontramos algo muito parecido em “O Cabeleira” de Franklin Távora, em “Vidas Secas” de Graciliano Ramos, em “As mulheres de Tijucopapo” de Marilene Felinto, a primeira a explorar, em primeira pessoa, a condição de migrante nordestina em São Paulo. E, de fato, nesse cavoucar da história nos deparamos com os fantasmas da infância e a vida adulta desses indivíduos, os maus-tratos dos pais, as condições financeiras, a falta de higiene, de expectativas e de oportunidades para esses muitos que ainda vivem nesse sempiterno soçobrar pelas nossas sociedades contemporâneas.
                    Em nosso tempo, abrolhadas às mudanças climáticas, a tecnologia, o avatar econômico graças à evolução da globalização e à liberdade de movimento pelos avanços em transporte (aéreo, terrestre, marítimo), à influência da mass media, a busca incessante por um lugar ao sol tornou-se, em última medida, um valor incalculável para essa nova hoste de homens e mulheres que não mais procuram a Terra Prometida dos que fugiram do Egito, para esses novos viajantes sem o deus Hermes, ou a esses novos estranhos dos textos freudianos. Tratam-se mais do que nada em um claro exemplo de vicissitude para a subsistência; um outro tipo de existência ancorada na conquista de um pequeno espaço do que no localismo em si que trouxe à tona uma tipologia diferente de configuração urbana e social, a saber, a confrontação do cidadão com o próximo que hoje habita nas grandes metrópoles interplanetárias, quiçá, sem o futuro esplendor que os sistema prega, mas com um passado rico e ao mesmo tempo, infeliz dos moradores de rua e dos que sobrevivem da rua para arcar com suas despesas.
                   
Isto não é uma circunstância lépida apenas para Megalópoles como São Paulo. Sucede em outras capitais como Paris, Buenos Aires ou Nova Iorque com outra cara, porém o fundo, sem querer igualar, possui a mesma textura cada um se adequando aos seus moldes históricos e ambientais. O caminho da arte nos leva a esse entendimento; a óptica fotográfica, artística e literária pode contemplá-los de uma maneira extraordinariamente abrupta para os que duvidam do poder e da potencialidade dos que se arrogam uma diversidade e uma territorialidade além do que as pessoas possam visualizar conscientes de seus limites, ou como dizia Adorno, a tendência ao reconhecimento à participação do momento psicológico no processo dinâmico em que operam a sociedade e o indivíduo.
                   
Uma das imagens do projeto
As grandes leis do movimento social dentre esses dois termos (sociedade e indivíduo), tão caros para os governos tanto quanto para a população em pleno século XXI visa ter crédito dentro de um mundo de produção e consumo competitivos. Embora nem todos possam estar preparados para adentrar nesse ambiente de ganhos e perdas constituídos principalmente, pelas exigências da sociedade visto que trabalho e produção faz parte do ethos na pós-modernidade, existe uma quantidade considerável de indivíduos que não se ajustam a esse tipo de ideologia e que mesmo com políticas públicas de inclusão, esse considerável grupo não-participativo renuncia a sua condição de cidadão para comportar a massa dos desincluidos por opção e nunca por determinantes externos. São os denominados moradores de rua ou aqueles que sobrevivem nas ruas, verdadeiro exército de trecheiros urbanos em busca de uma territorialidade que os conceba como seres humanos e que fazem parte das nossas cidades dentro de um localismo diversitário.     
                    Não bastando essa incidência localizada existem somenos termos pejorativos que a própria História cunha-os. Por citar um exemplo, o bum, termo procedente do inglês usado para estereotipar alguém que não vale nada ou que nunca faz nada construtivo, ou o vagabundo que evita o trabalho. Mesmo o hobo o errante, o andarilho que perambula pelas estradas e se detém nos pequenos povoados e vilarejos em busca de um trabalho circunstancial ou bico. Um verdadeiro vagabundo gosta de viajar e ele vai trabalhar por comida, um lugar para dormir, alguns trocados, etc.
                    Alguns trabalhadores migrantes são vagabundos, e eles vão seguir as colheitas, à procura de trabalho, conhecer o país ou a região. Muitas vezes, ele simplesmente está desempregado e sem um lar para chamar de seu. O termo tramp que é dentro de uma esfera social é o vaqueiro que trabalha por um tempo, vai de fazenda em fazenda por um tempo X até continuar perambulando a outros locais ou regiões, etc. Diz-se que um vagabundo é muito parecido com um mendigo. Ele irá funcionar dentro de um emprego normativo, mas seu principal interesse está em aproveitar a vida como nas “Viagens de Gulliver” de Jonathan Swift ou como em “A Prostituta Errante” de Iny Lorentz de um lugar para outro aventurando, fugindo de um horror ou então, conspícuo objetivo para alcançar o indizível. De fato, a história da Literatura e nos estúdios psico-sociológicos de diversos indivíduos as viagens marítimas e as ferrovias eram, freqüentemente, os meios utilizados de transporte legal para quem ia a busca de emprego em emprego, de cidade em cidade, aventura trás outra aventura.
                    Assim chegamos ao universo atual desse contingente que permaneceu fora de toda essa esfera sócio-participativa da sociedade, mas que carregam consigo histórias do passado, mitos, ideais, sonhos, esperanças tal como o demonstra o fotógrafo Sergio Matta nessas incursões no Centro de São Paulo não tão diferente a todas essas histórias narradas por grandes e afamados pensadores, literatos e esquadrinhadores da alma humana. Em sua maioria, migrantes e imigrantes, tornam a construir um novo modelo de localismo projetado pelo incessante deslocamento à procura de diversidade de experiência e constituição de territórios sem destruir identidades coletivas e individuais, empossando-se dessa parte da cidade que lhe pertence, elaborando sua ética de vida, alterando o discurso social, mas sem destroná-lo, criando uma multiplicidade de sub-culturas, sem que essa terminologia tenha acentuação pejorativa. Em qualquer país estrangeiro ou região pode se sentir, um indivíduo qualquer, como em sua própria casa, decifrando sinais como em um ato intelectual: requer um certo esforço espiritual.
                   
Eis aqui onde os fotógrafos paulistanos Sergio Matta e Ângela Pereira decidiram pôr em foco a questão da diversidade através da expressividade que o espírito faz e desfaz tornando-se constitutivo à personalidade do homem que vive e sobrevive nas ruas da cidade. A expressividade como fonte de inspiração, inclina-se à observação dos variados grupos sociais que integram a sociedade paulistana e que de um modo ou do outro, propagam uma riqueza aquém dos interesses da coletividade. Esses grupos que trafegam diariamente pelas ruas, avenidas, ruelas, praças, parques da cidade envolvidos numa bruma de incertezas provocam em alguns cidadãos furor; em outros, espanto; em outros, compaixão e solidariedade. Esses grupos que antes pertenciam às esferas dos pioneiros, dos migrantes e imigrantes, dos peregrinos, dos andarilhos encontraram nas grandes cidades seu último refúgio. Aqui são catadores de papelão, latinhas, ferro velho; bebem suas cachaças, contam suas histórias de outrora, compartilham seu pão de cada dia; moram nas ruas por diversas causas que oscilam desde problemas psicológicos até abandono de lar e ex-presidiários que sem contar com um apoio sólido de parte das instituições decidem fazer da rua seu lar e seu ponto de referência.
                    
Uma das imagens do projeto
Desses grupos que, na Idade Media, procuravam realizar os valores morais e culturais da sociedade fora do contexto passaram a ser grupos organizados que vivem e subsistem graças à cultura moral e ética de uma sociedade que aparentemente prega a pluralidade de pessoas e pensamentos. Aqui encontramos pessoas com um vasto conhecimento educacional e cultural; pessoas que desistiram de fazer parte de uma organização social em onde o trabalho, o consumo, a produção e a competitividade são termos de lei a cumprir. Encontramos pessoas que por toxicomania acabaram deslizando na verve implacável da miséria diante do inexorável que a mesma sociedade representa para eles dentro desse contexto variável e invariável dos seus direitos e seus deveres, mas renunciam por opção. Aqui, conseguintemente ao já dito, encontramos artesãos, carpinteiros, escritores, leitores, analfabetos, donas de casa, jogadores, boêmios, pedreiros, construtores de suas próprias formas de pensar e de agir, construindo seus próprios universos, suas metáforas, seus mitos destinados a crer que pode vir um futuro melhor embora o presente, malgrado, os ponha fora da lista dos creditados.
                    Todas as formas de associação de seres humanos apóiam-se intrinsecamente e em última análise, sobre território e sobre associação e que, contrario do que muitos pensam, eles possuem uma extraordinária organização de independência e locomoção. É o caso, por exemplo, dos sem-teto ou homeless que são parte ativa dessa independência precípua e estimulada por uma mínima esperança de ter um lar, uma família, um ponto de apoio e nada mais do que natural se o vemos do ponto de vista biológico e sociológico do ser humano.
                    A exposição “Diversidade e Território” é um excelente visualizador desses modos de vida alheios à vida da grande maioria de paulistanos e não-paulistanos, mas que de fato, é um excelente mediador entre essa população que convive junto conosco, um quebrador de paradigmas, um foco instigador de olhares e procedências com o intuito de causar uma ruptura entre o visível e o invisível e com isso, derrubar todo preconceito e formalidades. Em última análise, a arte, principalmente, em se tratando de arte imagética, pode estimular a humanização do olhar ao redor do nosso universo e começar a perceber que existem outras realidades e que nem mais nem menos são vidas e vidas que podem ter uma semelhança e contigüidade tão próximas de cada um em nossas vidas. Basta apenas ver esse olhar do diverso no mesmo território em que pisamos durante o nosso cotidiano.



Ludwig Ravest é chileno, escritor, estudou filosofia na Universidade de Santiago e atualmente vive e trabalha em São Paulo.

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