terça-feira, 5 de agosto de 2014

CINEMA - d i c a & c r í t i c a - "Linha de Passe" - por Tito Oliveira

Em uma de minhas críticas sobre o cinema brasileiro apontei certa falta de amadurecimento em muitas das produções aqui realizadas. Neste momento estou enunciando a existência de tal controvérsia. 

O filme “Linha de Passe”, de Walter Salles, 2008, e co-dirigido por Daniela Thomas, nos apresenta, de maneira veemente, a verdadeira realidade na rotina de uma família periférica da capital paulista. 

Família composta por pessoas que não buscam suas identidades na criminalidade e contraria a justaposição feita por cineastas que se submeteram a descrever os sonhos dos originários das periferias e favelas na prática marginal de praxe. 

Na ocasião a esperança é permeada pela honestidade, que por sua vez é limitada ao mercado de trabalho informal ou a busca às peneiras de futebol, além da desesperada necessidade de crença, esta última incitada através de igrejas protestantes. 

A trajetória da película é regida por interpretações plausíveis, haja vista o desempenho da personagem Cleuza, interpretada pela atriz Sandra Corveloni, ganhadora da Palma de Ouro. 

Embora colorido, o filme concebe uma fotografia que me remete ao clima noir do estilo Nouvelle Vague de cinema, muito presente nas obras de Godard. No entanto estabelecida inteligentemente como forma de preservação de uma originalidade atmosférica, típica do habitar de classes menos favorecidas no Brasil.

A parceria entre Walter Salles e Daniela Thomas percorre, em tal contexto, por uma trilha à margem dos chavões sociais já expostos nos cinemas brasileiros. 

Não há relevância em saber se a intenção deles foi ou não diferenciar sua obra das demais produções nacionais que discorreram sobre igual temática. O importante mesmo é que conseguiram. Pois nos possibilitaram o registro de uma solidez envolvente, que traduz a narrativa no gesto, na espontaneidade que os abstiveram da especulação ou banalização de tais fatos. 

É preciso reconhecer que o cinema mexicano, argentino e, em proporção ainda que menor, também o cinema brasileiro têm rompido com a hermética das premiações europeias e americanas. Por outro lado, devemos nos tornar capazes do discernimento para o real valor de tais obras. Uma vez que muitos alcançaram prestígio desprovidos de critérios para exprimir suas ideias ou insinuações. 

O que se pode apreender na busca do personagem Dario e de seus irmãos, enquanto anseio para uma a definição de identidade, pode ser ainda mais profundo se pensarmos que tais desejos encontram-se associados à obsessão para se firmar numa sociedade através de um brasão de cidadão, exageradamente exigido por meio de um determinado nível social. 

Transmitir na cena em que um jovem, filho de uma serviçal, é convidado pelo filho da patroa de sua mãe, a participar de uma “pelada” no condomínio de classe média e, demonstrando sua habilidade, torna-se hostilizado pela intolerância de um dos moradores do respectivo condomínio, que diante de uma indagação sobre sua atitude inóspita exclama: "Tá bom, agora eu também vou trazer o filho da minha empregada para jogar em meu time!", nos mostra o desprezo que sentimos por essa dicotomia e ao mesmo tempo nos afirma que insistimos em permanecermos demagogos, quando pensamos não sermos complacentes com tamanha estupidez, arrogância. 

Quando vamos ao cinema e contemplamos nossas ações inconsequentes através de determinadas mensagens, sejam estas pragmáticas ou metafóricas, precisamos suprimir a indolência e enxergar a verdadeira essência que nos compete, pois a oportunidade não se encontra em uma esquina qualquer. 

Ao que me resta, diante do exemplo de lucidez apresentado através de uma obra cinematográfica de produção nacional, é parabenizar Walter Salles e Daniela Thomas por nos mostrar que nem tudo está perdido em prol do conforto. 

Que ainda há entre os membros da classe artística, aqueles que enxergam além da ilusão. E ainda mais relevante, os que se encontram cientes de que o grande problema não está na pobreza, mas na ignorância. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário